120 ANOS DE CINEMA – 1906-1915 | KINOS

Todo mundo já sabe o que é o cinema, então é hora de ele se afirmar. Em sua segunda década, a sétima arte continua explorando o que descobriu nos anos anteriores, mantém-se em busca de novas alternativas (sempre) e, o mais importante, sistematiza seus conhecimentos. De modo aristotélico, começa a separar elementos que herdou do teatro e os reconfigura, desenvolvendo linguagem própria. É a década da expansão em vários países do que antes parecia ser uma arte francesa, do crescimento megalomaníaco desse espetáculo com a descoberta do épico e da coroação do exercício narrativo com a montagem alternada. O cinema começa a andar com as próprias pernas.

1906
As quatrocentas faces do diabo (Georges Méliès, 17’)
Ele está de volta e desta vez num frenesi incansável que mistura truques de palco e de câmera. Nessa mistura de alçapões e cortes, o grande mago do início do cinema parece ter mesmo vontade de mostrar as 400 faces do diabo, porque segue num ritmo tão intenso que os 17 minutos parecem não conseguir conter tantas ações. Entre malabarismos de atores, efeitos conhecidos de fumaça para desaparecimentos e a famosa cena da carruagem com o cavalo de ossos (num delicioso exercício que mistura homens e fantoches), o filme ainda surpreende por ter cores. Recurso novo? Pelo contrário: o bom e velho lápis de cor, pacientemente aplicado a cada um dos 16 frames por segundo daquele tempo. Outro filme interessante do ano é As consequências do feminismo, da pioneira Alice Guy-Blaché, no qual inverte os papéis de homens e mulheres, apoiando-se em todos os clichês de uma sociedade que pode ser repetitiva se maniqueísta.

1907
O hotel assombrado (James Stuart Blackton, 6’30’’)
O filme que intrigou o mundo. Blackton mistura de tudo: animação no início pra apresentar o hotel, movimentos com fios invisíveis nos objetos do quarto que encucam o viajante que ali se hospeda e cortes de cinema pra fazer aparecer e sumir objetos. Além disso, a câmera gira em seu próprio eixo, como se o quarto estivesse em movimento, o que corta pra um monstro que devora o viajante que treme em sua cama, já tendo sido assombrado por fantasmas de imagens sobrepostas. Nada disso, porém, chama tanta atenção quando a mesa assombrada do quarto. Quando a comida é colocada ali, ela se organiza sozinha: o bolo se fatia e as fatias se organizam, o bule joga leite e derrama na xícara, os objetos se movem perfeitamente, como se uma mão invisível os segurasse. Fantástico ainda hoje, mesmo quando se conhece o recurso. Muitos produtores mundo afora perguntaram ao realizador como havia conseguido aquilo e ele explicou: quadro a quadro. Nascia o stop motion.

1908
O assassinato do duque de Guise (Charles le Bargy e André Calmettes, 15’30’’)

080 - Duc de Guise

No momento em que as indústrias Pathé produziam 6 filmes por semana (!), a discussão girava em torno do caráter artístico das produções. A obra escolhida faz, conforme Henri Langlois, a separação entre pioneiros e mestres do cinema. Numa soma de teatro com pensamento acadêmico do cinema (mesmo que ainda jovem) a equipe compõe o primeiro filme-de-arte, por mais ambíguo que a alcunha possa parecer. Nesse manifesto, além da estrutura didática da narrativa, a trilha sonora, composta especialmente por Camile Saint-Saëns, amplia a tensão e colabora pra tornar esta uma grande influência pra grandes nomes, como Griffith e Dreyer. O filme ainda é responsável pela primeira crítica cinematográfica, escrita por Adolphe Brisson para o jornal Le temps. No mesmo ano, outro primor vem à luz: a animação Fantasmagoria, de Émile Cohl, desenhada quadro a quadro, como ensinou Blackton no ano anterior.

1909
Nero (Luigi Maggi – ou Roberto Omegna, discussão secular -, 12’30’’)
Célebre personagem da história, Nero traz consigo amor, morte e loucura, nada melhor pra demonstrar todo o potencial melodramático do cinema italiano. Além do caráter didático da história, que lembra movimentos de balé em alguns momentos, o filme remete a História de um crime, quando Nero imagina e as cenas de Roma em chamas aparecem ao seu lado. Como o cinema não ignorava sua origem teatral, a boa estrutra que mostra a crescente insanidade do imperador de Roma rendeu 342 cópias que circularam o mundo e o sucesso contribuiu para que houvesse uma aposta no crescente cinema italiano, sobretudo em seu caráter espetacular, que geraria, poucos anos mais tarde, seu filme mais importante no tempo do cinema mudo. Aguarde.

1910
O abismo (Urban Gad, 37’)

080 - Abismo

Qual seria o início do abismo em que se deixa cair Magda: o sedutor que encontra no bonde ou o dançarino de circo que a convida pra fugir? Nesse terceto de forças desiguais, Knud (do bonde) se mantém em busca de Magda (Asta Nielsen), que se vê cansada dos namoricos de Rudolf e aos poucos se deixa tomar por sentimentos pouco afeitos a uma dama. O filme tornou-se conhecido pela forma de Asta Nielsen seduzir o amado, sobretudo na cena em que dança com Rudolf num palco, que valeu à obra a censura em alguns países. Nasce, assim, o erotismo no cinema, em que a cena é parte da história, e não uma jogada gratuita de produtores. Do mesmo ano, a divertida animação O sonho de um empregado de café mostra o que passa pela cabeça do trabalhador quando ele vai dormir depois de um dia cheio: trabalho. Ponto pra crítica de Émile Cohl.

1911
O inferno (Francesco Bartolini, 1h08’)
Primeiro longa-metragem italiano e inspirado nas imagens do desenhista Gustave Doré, foi um teste pra audiências de vários países. Obras dessa duração costumavam ser exibidas em episódios, os distribuidores diziam que o público não aguentaria tanto tempo, mas isso se comprovou um equívoco. Embora com muitas cartelas de texto (o IMDb credita o roteiro ao próprio Dante…), os cenários são interessantes e as 54 cenas são compostas pelo ar sombrio imaginado pelo escritor florentino. Com bom uso das técnicas conhecidas, encontra soluções interessantes pra certos efeitos, como a auréola em Beatriz (é um ventilador?). E no inferno existem apenas homens, provavelmente pra evitar problemas no estúdio, pois estão todos nus ou de tanga, nesta primeira exibição de nu frontal da história do cinema. Mas não, este ainda não é o filme mais importante desta fase na Itália. Outro destaque do ano é Max toma banho, em que o cômico Max Linder, influenciador de Charles Chaplin, Buster Keaton e Harold Lloyd, segue a prescrição médica de tomar banho pra acabar com um tique nervoso e, só havendo torneira no corredor do prédio, instala ali sua banheira. Sequência de soluções simples num ritmo que vai se manter nas grandes comédias do cinema mudo, com boas doses do inacreditável.

1912
Satã (Luigi Maggi, 1h12’)
Com o subtítulo ‘O drama da humanidade’, este longa é a reunião de quatro histórias em torno do mesmo tema: os conflitos do diabo contra distintos antagonistas. Seja no início da criação do mundo, na Jerusalém de Jesus Cristo, na Idade Média ou numa indústria do século XX, Satanás apronta das suas e, principalmente, influencia Griffith e Dreyer, numa articulação que não depende de contar uma mesma história pra mostrar ao espectador valores comuns. Neste mesmo ano, O Dunbar de Delhi é o primeiro grande filme com as cores ‘naturais’ (sem colorização em estúdio) e Méliès apresenta seu último grande trabalho, A conquista do Polo, em que uma expedição para o Polo Norte envolve pensadores, sufragistas que querem participar da viagem e invenções que não perdem pra Leonardo da Vinci e Santos Dumont. Nessa história que muito se assemelha a sua empreitada pra Lua, Méliès, conforme Georges Sadoul, chega à perfeição de um Giotto finalizado no tempo de Miquelângelo e Rafael.

1913
Fantômas (Louis Feuillade, 5h30’ em 5 episódios)
080 - Fantomas
Nessa sequência de perseguição entre mocinho e bandido, com as duas últimas partes lançadas no ano seguinte, sabe-se desde a primeira cena pra quem torcer. Antes da história, o filme apresenta o ator René Navarre e suas diversas faces como Fantômas, o bandido caçado por Juve. Com cenas precisas, o clima de tensão percorre cada minuto e as cartelas de textos são pontuais, organizando tempo e espaço na narrativa. Fugindo do teatralismo ainda forte no cinema, Feuillade consegue, como afirmou Alan Resnais, unir o fantástico de Méliès ao realismo dos Lumière. Neste mesmo ano o cinema alemão flerta com o sobrenatural e dá o primeiro passo em direção a um dos principais movimentos da sétima arte com O estudante de Praga, que será refilmado em 1926.

1914
Cabíria (Giovanni Pastrone, 2h06’)
080 - Cabiria
Se os filmes com mais de uma hora já haviam se popularizado, a Itália mostra ousadia ao mundo neste grande épico do cinema mudo. Filme emblemático do grande espetáculo, influenciou Griffith e DeMille na concepção de suas obras-primas. Com recursos até então pouco dominados, Pastrone mostrou como se usava um travelling e um dolly, apresentando ao mundo a grandiloquência e a suntuosidade desse drama histórico, filmado ao longo de seis meses. Os textos são de Gabrielle D’Annunzio, na verdade uma re-escrita poética do que lhe enviou Pastrone depois de que o poeta estourou os prazos. Fellini homenageou Pastrone fazendo outra versão do filme, em 1957, e Griffith, logo que o viu, quis trabalhar com cenários construídos, e não mais pintados, o que lhe valeu um enorme prejuízo e um grande filme. E sim, o filme do ano é o grande clássico do cinema mudo italiano.

1915
Nascimento de uma nação (David Wark Griffith, 3h)
080 - Birth of a nationO grande mestre da linguagem cinematográfica fecha a segunda década de vida do cinema com chave de ouro. Henri Langlois considera este filme como o nascimento do cinema moderno, pois une e aprimora diversos elementos dos anos anteriores. A montagem alternada serve pra conduzir o espectador por diversos planos diferentes da narrativa, articulando ritmo e aprimorando tensão. A mistura de cenas de interior com as externas também trabalha na condução da história, não deixando o público descansar, pois precisa fazer sua parte na construção da trama. Racista, e condenado por isso, o longa é um primeiro impacto que Griffith dá no cinema, mas sua grande vontade inspirada por Cabíria só vai ser realizada no ano seguinte.