NÚMERO ZERO | LITERATURA

Número zeroNúmero zero é a versão beta do jornal Amanhã. O livro de Umberto Eco, meta-irônico, é sobre todo o projeto Amanhã, no qual é empregado Colonna, jornalista e virão de longa data, responsável por, no projeto, coordenar os jornalistas beta da redação, mas na verdade escrever sobre os bastidores do projeto; o que Eco faz.

Colonna, como bom jornalista, passa atentamente por duas etapas anteriores à escrita: ouve e reflete. A audição jornalística vem acompanhada de perguntas e o personagem as mantém como fiéis escudeiras por toda a prosa. Primeiro, ao sofrer reprimenda da vizinha, questiona os próprios atos da noite, até chegar ao mais improvável, mas não de todo impossível: alguém estivera em sua casa naquela noite, em segredo, buscando alguma informação concernente ao trabalho no Amanhã. Deste ponto, ele retoma a história desde seu contrato para a empreitada.

A excelente ideia de criar um jornal que durante um ano lance 12 exemplares fantasmas, os chamados números zeros, é boa, não fosse a intenção pouco nobre por trás: fazer desses números objeto de negociação de interesses, como se o jornal, se real, fosse publicar determinadas informações e, antes mesmo de ser lançado, ter sua publicação suspensa, pois o dono, o comendador Vimercate, já terá o respeito esperado nos principais círculos italianos. O jornal, numa perspectiva realista para o mundo binário de hoje, faria o que os jornais deveriam se propor de algum modo: articular os fatos e pensar no porvir. Por que Colonna, um jornalista, aceita conscientemente trabalhar em um jornal que não será lançado e, assim, ilude os jornalistas ali empregados com a perspectiva de um futuro?

Como bom jornalista, pensa sobre o passado, e a principal conclusão a que chega é a de seu fracasso na vida. De tradutor de alemão e revisor de enciclopédia ao escritor fantasma que se tornou, adquiriu enorme conhecimento de mundo, o que o torna um fracassado. Nas palavras dele: ‘‘Os perdedores, assim como os autodidatas, sempre têm conhecimentos mais vastos que os vencedores, e quem quiser vencer deverá saber uma única coisa e não perder tempo sabendo todas, o prazer da erudição é reservado aos perdedores. Quanto mais coisas uma pessoa sabe, menos coisas deram certo para ela.’’

Ao ouvir mais do que falar, ele percebe coisas e entende pessoas, pensa sobre toda a situação do ainda não jornal e escreve frases pontuais sobre a situação do jornalismo no mundo. Muitas vezes humilde, se refere apenas ao jornalismo italiano, mas sabemos que o mundo tem se empobrecido no quesito busca aprofundada por informação. E para isso, o duelo entre a sinceridade do personagem e a constante ironia do autor joga o leitor em pausas para olhar em volta ou, caso seja jornalista, pensar em si.

Eco é um piadista, desses que se utilizam do mais fino humour para gerar o riso interno do leitor, que por vezes, como age para si, incomodamente ri de sua ignorância. Se por um lado a distância do leitor do contexto em que a história se passa (a cidade de Milão e a política italiana) pode impedir algumas compreensões, outros atos descritos pelo autor, de questões universais, deixam a pulga atrás da orelha do leitor: quanto disso é verdade? O próprio narrador questiona algumas afirmações, como muitos dos elementos da história de Mussolini, até que as consequências da história começam a afetar diretamente sua vida. Em alguns momentos dá vontade de parar de ler e pesquisar, mas o livro (ou a preguiça do leitor, um dos maiores males atuais) venceu.

O problema não é a verdade existir ou ser conhecida por poucos, mas a ameaça de que seja publicada no jornal. As notícias do jornal servem para o que querem seus autores. Quem não conhece histórias de matérias que deveriam estar na primeira página relegadas a notas de rodapé, fragmentos do caleidoscópio benjaminiano que é a página de jornal, quebra-cabeças que o leitor crítico consegue ligar. Quem é esse leitor hoje? O que se contenta com um jornal ou fontes noticiosas do mesmo grupo? Isso o leitor de Número zero percebe que não é de bom tom. Ou o sucesso estaria, justamente, na ignorância do todo em prol do conhecimento específico. Mais uma ironia de Eco.