MUDANÇA DE HÁBITOS – O CINEMA DE RUA | KINOS

O cinema nasceu na rua, das exibições que o gestaram nas feiras à sua grande estreia num café de Paris. Foi parido ali porque ali foi semeado, pois a fotografia usava a luz das ruas e a câmera das múltiplas imagens por segundo continuou seguindo por bulevares para mostrar o cotidiano. Das ruas de Paris às de outras cidades da França e além, ver na telona o cotidiano do outro era quase como estar lá.

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Entrar num cinema de rua era como sair do mundo que existia a sua volta e viajar para lugares até antes nunca visitados, para muitos invisitáveis até o final da vida. Era esse encanto que fazia com que as pessoas corressem do trabalho às salas, onde o único compromisso era se entregar aos novos eixos espacio-temporais que se descortinavam diante dos olhos.

Certa vez, contou meu avô, que os colegas de trabalho da prefeitura se reuniam na Praça da Estação em Juiz de Fora, ao final do dia, para um tradicional happy hour. Certa feita, um dos colegas declinou do encontro, dizendo que tinha um compromisso importante. O referido rapaz era o único na repartição que tinha uma pasta rosa, a qual os colegas viram cobrindo um rosto enquanto o dono entrava no Cine São Luiz, ao lado da praça e cujos filmes exibidos nem sempre foram dos mais castos.

O cinema das grandes salas trouxe a cortina do teatro para abrir e fechar a tela, o que ainda existe nos mais tradicionais, como o Studio 28, em Montmartre, palco de um dos trágicos momentos da ignorância humana diante da sétima arte. O charme da sala contrasta com a imponência outra, descendo para os Grandes Boulevares, que é o Grand Rex e seus 2800 lugares. E ainda há dias de lotação.

Dificilmente algo que surge do nada se estabelece, menos ainda com a rapidez com que a sétima arte foi abraçada pelo espectador. O costume de sair de casa para feiras ou para o teatro já existia e o cinema como espetáculo se aproveitou disso e arrastou multidões em pouco tempo. Se no início o privilégio era de poucos, isso durou semanas, pois Méliès saiu das barracas da prestidigitação para o grande palco da telona.

Os parques continuaram exibindo filmes em 180° ou 360°, além de montagens com ilusões que interagiam com atores, o que foi logo levado ao teatro por Piscator. Desse constante diálogo nasceram propostas para levar as pessoas para as salas escuras, onde viam filmes, notícias e, grande ferramenta de sedução, trailers.

Os anúncios, outrora conhecidos como “proximamente nesta sala”, insistiam para que o público não ficasse em casa no dia ou na semana seguinte. Eram chamariscos para que casais se programassem, amigos conversassem sobre o filme antes dele entrar em cartaz e mesmo admiradores do audiovisual pudessem se organizar e estudar o diretor, o ator ou outros profissionais cujo trabalho veria em breve.

Estudiosos se reuniam também em cinematecas ou cineclubes, em que colecionadores mantinham acervo de clássicos, de estéticas ou de diretores preferidos e abriam as portas de alguma sala para mostras especiais, temáticas, com intuito de gerar discussões e levar além o que viam na tela. Debates profundos nasceram desses encontros, artigos foram escritos, revistas ganharam as bancas e mesmo filmes surgiram dessas críticas, como a Nouvelle Vague.

Ainda hoje esses elementos existem: o marketing trabalha muito além do trailer (campanhas chegam a começar um ano antes do filme entrar em cartaz, em sites e redes sociais), os cineclubes se reúnem de formas até insólitas (em Londres, um deles faz exibições em lugares diferentes e as divulga perto do dia programado para funcionar) e os cinemas continuam abrindo suas portas para as ruas.

O principal fator desse tipo de espaço para ver cinema, o templo por excelência da sétima arte, seja ele a sala histórica ou os amigos num espaço público com um datashow, é o amor pelos 24 quadros por segundo. O cinema tira as pessoas de casa para que elas vejam cinema. Podem até fazer algo antes ou depois, mas o objetivo de tudo é o filme.