ESTAÇÃO ONZE | LITERATURA

estacao-onzeAntes de começar o curso de jornalismo, eu já fazia parte de um grupo de teatro — o Divulgação, com quase 50 anos de atividades — cujo diretor, José Luiz Ribeiro, viria a ser, no primeiro período da faculdade, meu professor de Teoria da Comunicação I. No período entre a aprovação no vestibular e o início das aulas, perguntei a ele se havia algum livro cuja leitura eu pudesse adiantar. Ele me indicou dois: 1984, de George Orwell, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Claro que, ao contrário do que eu esperava na ocasião, nenhum dos dois romances foi tratado diretamente entre as teorias da comunicação. No entanto, a genialidade do Zeluiz de me indicar aqueles dois livros é diretamente proporcional ao interesse, inclusive histórico, que passei a ter pelas distopias.

Pode parecer uma declaração ingênua, mas acredito numa arte — e, consequentemente, a literatura — que é reflexo de seu tempo. Como é mais do que sabido, 1984 foi escrito em 1948, já em plena  Guerra Fria. Anterior a ele, Admirável mundo novo, de 1932, inscreve-se no contexto turbulento pós-Primeira Guerra Mundial. Em ambos os casos, havia tanto desilusão quanto um testemunho sobre as atrocidades de que a humanidade é capaz.

Não creio que seja diferente como este Estação Onze, romance distópico da escritora Emily St. John Mandel publicado no Brasil pela Intrínseca. Já na sinopse, mostra-se o entrecruzamento de histórias e a catástrofe que leva ao esfacelamento da sociedade como a conhecemos: ‘‘Certa noite, o famoso ator Arthur Leander tem um ataque cardíaco no palco, durante a apresentação de Rei Lear. Jeevan Chaudhary, um paparazzo com treinamento em primeiros socorros, está na plateia e vai em seu auxílio. A atriz mirim Kirsten Raymonde observa horrorizada a tentativa de ressuscitação cardiopulmonar enquanto as cortinas se fecham, mas o ator já está morto. Nessa mesma noite, enquanto Jeevan volta para casa, uma terrível gripe começa a se espalhar. Os hospitais estão lotados, e pela janela do apartamento em que se refugiou com o irmão, Jeevan vê os carros bloquearem a estrada, tiros serem disparados e a vida se desintegrar. Quase vinte anos depois, Kirsten é uma atriz na Sinfonia Itinerante. Com a pequena trupe de artistas, ela viaja pelos assentamentos do mundo pós-calamidade, apresentando peças de Shakespeare e números

musicais para as comunidades de sobreviventes. Abarcando décadas, a narrativa vai e volta no tempo para descrever a vida antes e depois da pandemia. Enquanto Arthur se apaixona e desapaixona, enquanto Jeevan ouve os locutores dizerem boa-noite pela última vez e enquanto Kirsten é enredada por um suposto profeta, as reviravoltas do destino conectarão todos eles. Impressionante, único e comovente, Estação Onze reflete sobre arte, fama e efemeridade, e sobre como os relacionamentos nos ajudam a superar tudo, até mesmo o fim do mundo’’.

Os temas não são novos e estão aí, hoje, inclusive as epidemias que assolam vidas. O que a distopia faz é elevar esse cenário que nos é conhecido e do qual nem sempre nos damos conta à enésima potência, esfregando na nosso cara a velha pergunta: e se? Mas o grande trunfo da história é não tratar apenas da calamidade, e sim da vida antes, durante e depois dela. E por vida entenda-se não uma tese social, mas as questões íntimas das personagens. No meio do caos coletivo, não há uma massa que se move, mas indivíduos, impulsionados por questões que têm a ver com sua própria sobrevivência, sim, mas também por vontades e medos que são particulares.

Dos três personagens principais, citados na sinopse, por exemplo, acompanhamos, de Arthur, de trás para a frente, a vida de relacionamentos fugazes à morte solitária, em cena; de Jeevan, das revelações de sua relação prévia com o ator até as dificuldades extremas dos dias pós-pandemia; de Kristen, a tentativa, ao lado da Sinfonia Itinerante de prosseguir com a arte num mundo destroçado, porque sobreviver não é o bastante. Sem falar nos personagens secundários, entre os quais merece destaque Miranda, primeira ex-mulher de Arthur e autora da série futurística de quadrinhos Estação Onze, que dá nome ao romance.

Como distopia, Estação Onze é assustadora, justamente porque plausível e totalmente conectada ao mundo em que vivemos. Mas é também esperançosa, porque, no fundo, todo universo distópico também fala um pouco de utopia.