120 ANOS DE CINEMA – 1895-1905 | KINOS

A primeira década do cinema, que inclui os poucos dias que viu de 1895, é um período de conhecimento do mundo. Recém-nascido, ainda estranha suas possibilidades, não sabe o que deve copiar dos adultos e o que pode fazer por si mesmo. Maroto, não demora a se fazer notar por diversos públicos, entre os quais, os curiosos por experimentar o que uma câmera pode fazer e os imbecis que vão à justiça por bobagens.

1895
A execução de Maria Stuart (Alfred Clark, 12’’)

079 - Execussion of Mary Stuart

Entre tantos possíveis marcos iniciais do cinema, este destaca um nome anterior e a inauguração de um dos gêneros mais prolíficos. Embora menos ousado que os dois referidos no texto de abertura, este tem por trás a mão de Thomas Edison, que se pouco contribuiu para a evolução do cinema, foi o gestor que levou o feto aos irmãos Lumière. Dirigido por Alfred Clark, que trabalhava com Edison, este pode ser considerado o primeiro filme de terror, pois mostra como Maria Stuart foi decapitada diante do público. A grande contribuição cinematográfica é a trucagem usada pra que isso ocorra: num instante ela se inclina pra ter a cabeça cortada e no outro, plaft, cabeça ao chão. Primeira trucagem por substituição, com a qual Méliès vai se divertir e mudar o cinema nos anos seguintes. Se, no entanto, quiser ver comédia, procure O regador regado, dos Lumière, tão teatral que o fugitivo nem consegue sair do enquadramento.

1896
Coroação do tsar Nicolau II (Francis Doublier e Charles Moisson, 1’02’’)
Se o cinema nasceu documental, este pode ser considerado o primeiro grande documentário do cinema, ou a primeira notícia. Quando a equipe dos Lumière viajava o mundo exibindo onde esteve e registrando onde estava (o travelling nasceu numa gôndola veneziana), os dois cinegrafistas aproveitaram a viagem à Rússia pra acompanhar a coroação. Com pouco mais de um minuto, é a primeira grande reportagem filmada, mais objetiva e pontual que muito do que se produz hoje pela televisão mundial. A imprensa, por sua vez, considerou ‘‘absolutamente repugnante’’ (New York World) O beijo de May Irwin e John C. Rice filmado por William Heise, numa infeliz mostra de pudor diante da jovem arte.

1897
A luta Corbett-Fitzsimmons (Enoca J. Rector, 18’)

079 - Corbett-Fitz ingresso

No dia 17 de março, em Carlson City, estado de Nevada, quatro câmeras foram colocadas diante de um ringue pra registrar esse desafio do box. Foram 3 mil metros de película… Calma, explico: antes, a metragem definia o filme, não o tempo, e por isso ainda hoje os chamamos de curta, média ou longa metragem. Uma hora de filme tem, em média, uns 1600 metros. Vamos continuar: tudo foi filmado com uma película de 63mm, quase o dobro dos 35mm que foram incorporados pelo cinema. Além de tudo isso, ainda existe a emoção da luta (mesmo que um dos lutadores tenha confundido o uniforme e entrado na arena com um short de sumô). Alguma dúvida de que foi um sucesso?

1898
Os irmãos corsos (George Albert Smith, 75 pés… e agora?)
No mesmo ano, o Méliès inglês (ou seria Méliès o Smith francês?) testou em Fotografia de um fantasma o que aprimorou no filme em destaque: jogar com a sobreposição de imagens para ter os irmãos juntos na mesma cena. Feitos pelo mesmo ator. Sim, uma mágica digna de prestidigitador. No filme do fantasma, um fotógrafo insiste e falha ao tentar fazer seu registro. Smith jogou com o cinema como apenas Méliès foi capaz nesses primeiros anos, e se Smith volta em breve, o francês vem a seguir, em destaque, pela primeira vez.

1899
O caso Dreyfuss (Georges Méliès, 11’)
Embora ligado à ficção, um dos momentos mais polêmicos da vida de Méliès tem relação com a realidade: o polêmico caso Dreyfuss. Acusado e condenado por documentos falsos, o oficial judeu foi alvo de nacionalismo e xenofobia, e antes de tudo estar resolvido o diretor fez uma sequência de cenas autônomas que contavam a história, até então sem conclusão ainda. Proibido de ser exibido em Paris, o material correu o mundo e a censura daquele tempo não o impediu de fazer parte da história do cinema. Algumas cenas são mesmo impressionantes, como a do suicídio com navalha. E as poucas intervenções mágicas de Méliès (como relâmpagos no cais) apenas ambientam a narrativa, sem papel direto nela. Nem parece ele.

1900
A lupa da avó (George Albert Smith, 1’20’’)

079 - Lupa da vovó

O mesmo sujeito que brincava com sobreposição de imagens fez um fantástico exercício de decupagem e montagem neste filme. Hoje pode parecer lugar-comum, mas imagine mais de 100 anos atrás ver uma lupa colocada diante de uma gaiola de passarinho e o corte mostra o passarinho na gaiola ampliado. Simples como as grandes ideias e fundamental pra que o cinema seja o que é hoje. Não se pode ignorar O homem-orquestra, de Méliès, uma insanidade da qual só ele seria capaz então, mas a contribuição narrativa de Smith, este ano, é maior. Calma, o francês vai ganhar outro ano.

1901
História de um crime (Ferdinand Zecca, 5’20’’)
Habemus flashback. A ferramenta usada à perfeição por Orson Welles é apresentada ao mundo numa construção teatralmente cinematográfica: na prisão, o acusado retoma momentos importantes de sua vida em um sono que tem as imagens apresentadas na parede, na verdade um palco de montagens das lembranças. Influenciado por G. A. Smith (ou pelo menos parece), Zecca entra na história do cinema com uma grande contribuição ao realismo e tornando-se um dos principais nomes da primeira década da sétima arte. A quem gosta de metalinguagem, The big swallow, de James Williamson, mostra o que muitos famosos têm vontade de fazer: quando o fotógrafo importuna demais o personagem, ele o engole com a câmera e pronto, fim do problema.

1902
Viagem à Lua (Georges Méliès, 13’)
079 - Viagem à Lua - posterPor muitos tido como pai da elipse, este filme pode ser considerado o primeiro longa-metragem, pelo menos se comparado à duração então usual. Os 13 minutos de uma mesma história eram quatro vezes mais longos que o tradicional da época, e basta compararmos com o destaque do ano anterior pra termos mais que o dobro de duração. Mais do que isso, o filme tornou Méliès famoso não apenas pelos efeitos especiais, mas pela pirataria. Muitas cópias de seu filme foram feitas sem que os direito autorais fossem pagos, e isso, mais que o perturbar, o tornou famoso, talvez lição de Santos Dumont, brasileiro que fez fama em Paris e que mostrava a todos tudo o que criava, antevendo a política de compartilhamento de informações. Fica a dica. Méliès ganhou uma sucursal de seu estúdio em Nova York.

1903
O grande assalto do trem (Edwin S. Porter, 11’)
Como no ano anterior, a escolha não foi difícil. A outra opção era um filme Casamento no automóvel, de Alfred Collins, com exercícios de elipse narrativa e uma história um tanto fantástica, mas o filme escolhido contribui mais. Neste primeiro faroeste, gênero que consagrou John Ford, temos imagens em planos abertos, muitas externas e panorâmicas, além da montagem alternada e de muitos figurantes na saída do trem, todos ensaiados. Se muito disso já existia, o mais importante é perceber que que cada tomada faz parte da história, nada vem como mero exercício de linguagem que destoa. Uma curiosidade está na última cena, que poderia ter sido a primeira: Barnes, o chefe dos bandidos, assustava tanto o público que na edição a imagem foi deixada pro final, o que torna ainda mais interessante o filme.

1904
Personal (Wallace MacCutcheon, 6’20’’)
Nesta comédia divertida e simples, alguns exercícios de cinema e de moral são muito claros. O filme se resume a três momentos claros: um anúncio, uma perseguição e uma ameaça. No anúncio, um homem diz que procura uma mulher para transformar em esposa e marca o ponto de encontro. Enquanto passeia pelo local, ele encontra uma, duas e então várias mulheres, das quais começa a fugir. Daí em diante, a história se resume a cenas de perseguição em que ele surge por um ponto da tela e sai por outro, com o grupo de mulheres atrás. Neste sucesso de perseguição que lançou moda, o final inverte o início machista: a mulher que o alcança saca uma arma da bolsa e, conforme Arlindo Machado, é como se dissesse ‘casa ou morre’, mostrando quem manda na relação. Houve uma refilmagem em 1925 feita por Buster Keaton, e tantos outros desdobramentos do tema até hoje.

1905
Saída da missa em Narbonne (operadores dos Lumière)
Menos importante que o filme propriamente dito está a história por trás dessa tomada. Nessa primeira década, o cinema mostrou sua força e este noticiário é o perfeito exemplo do incômodo capaz de provocar. Como desde o início, a equipe de cinegrafistas dos irmãos Lumière aproveitava viagens e situações pra filmar o cotidiano. Nessa saída de missa na igreja de Saint-Just, em Narbonne, na França, no dia 29 de janeiro, não seria diferente, exceto pelo processo movido por um dos cidadãos que saía da igreja. Ele pediu 180 francos de indenização por ter tido seu retrato ‘animado’ registrado sem que sua autorização tivesse sido pedida anteriormente. Um juiz sensato não lhe deu razão, ou o tele-jornalismo teria perecido no berço.